(Leia este texto ao som de Dar-te-ei)
– Tá, mas continua. Então você olhou pro lado e percebeu que era hora de bater em retirada?
– Nem sempre a gente percebe. De vez em quando só escutamos alguma coisa berrar dentro do peito. E então vai embora.
– Então como é que foi que tudo terminou assim?
– Eu comprei umas flores baratas e ela esqueceu de me avisar que não ia dar para pegar o cinema naquele dia. Percebi umas horas depois que se eu realmente quisesse, teria investido um pouco mais ao escolher o tipo das rosas. Ela só deu um empurrãozinho praquilo o que eu queria, que era seguir em frente.
– E quanto tempo faz isso?
– Dois anos.
– E de lá pra cá você tá como?
– Me sinto meio perdido no mundo. Às vezes me sinto como se tivesse encontrado um lugar, mas nunca é isso o que eu quero. A graça tá em se perder, não tá?
– Depende da situação.
Respirei fundo antes de tirar os olhos do prato de comida e erguer o pescoço o suficiente do rosto que me fazia falar da vida outra vez.
– Depende, sim. Depende do que a gente sente quando ergue os olhos e esbarra em outros.
Senti o silêncio cortar à navalha cada uma das coisas dentro do peito, mesmo que não soubesse o que realmente sentia, até que me olhou também e disse que.
– Concordo. Não sei exatamente quando isso acontece, não sei onde essas coisas costumam dar também. Mas li num livro uma vez que acontece assim.
Tentei recontar a quantidade de taças de vinho que eu tinha bebido até então para justificar a burra atitude de falar do passado quando tudo o que eu queria era construir algum sentimento novo aqui dentro.
– Aí é que mora a graça, na falta de espera. Você nunca sentiu que o acaso funciona melhor pra gente do que o planejado?
– Senti, uma vez. Foi logo depois de deixar cair a última xícara da casa no chão. Se não fosse por isso, nunca haveria encontrado minha cafeteria preferida no mundo.
– Senti uma vez, também. Esbarrei com a pessoa na fila do supermercado e quis levar para casa para tomar o vinho que havia posto no carrinho, mas só tomei coragem um tempo depois.
– A gente se viu no supermercado uma vez, não se viu?
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Não consegui assimilar dentro da cabeça se ela havia entendido o que eu havia terminado de dizer, se eu havia entendido também, ou se achava acaso.
– Se viu, sim. Mas eu logo olhei pro lado para não parecer um maníaco te encarando.
– E precisou de duas semanas para perceber que talvez não parecesse e você poderia me dizer seu nome?
– Nem sempre a gente percebe. De vez em quando só escutamos alguma coisa berrar dentro do peito. E então fica.
Júlio Hermann